06 abril 2007

No país das cerejas

O texto que se segue, publicado num jornal diário em 15 de Junho de 2003, foi escrito por um Senhor de Portalegre a quem eu peço licença para divulgar dada a sua actualidade, pelo menos neste país.

"A cereja é um apreciado e bonito fruto que, para mim, sempre teve alguns senãos. Tem caroço, um tanto desproporcional relativamente ao tamanho da parte comestível, nem sempre é doce, às vezes está podre e muitas têm bicho. Para os que a produzem é de difícil e até perigosa apanha, é muito sujeita às intempéries e tem o que se chama “anos maus”, que, infelizmente, pelas queixas que sempre tenho ouvido, me parece serem praticamente todos.
Mas, esquecidos os senãos, a cereja é, de longe, o fruto que mais admiro e tudo porque tem o tipo de pé que tem, que a une a uma ou mais companheiras que também o possuam. Vivem ligadas pelos respectivos pés, regra geral, aos pares.
A cereja é um fruto que, através do pé, compartilha a sua vida, e que, depois de colhida, intensifica essa sua faceta social emaranhando-se, sempre pelo pé, com todas as outras que também foram apanhadas.
Quase tão sociais como as cerejas, só conheço os morangos e os abacaxis, que vivem, muito apertadinhos em aquénios, e as bananas e as uvas que habitam mais desafogadamente em cachos, quase nada ou pouco se tocando. Todos estes, todavia, vivem em clãs isolados afastados dos demais.
Se os portugueses fossem fruta e eu fosse um agente policial interessado, para exponenciar a minha eficiência, gostaria que todos eles fossem cerejas, mas cerejas com pé. Tinha a vida facilitada e acabavam, em breve, todas as associações de malfeitores, por mais secretas e mafiosas que fossem.
Dou dois ou três exemplos para que entendam as razões dessa minha aparentemente estranha escolha.
Suponhamos que temos um cesto cheio de portugueses que tendo passado do reino animal ao vegetal, se tornaram cerejas sem terem perdido o pé. Peguem numa delas, que sabem que leva uma vida inexplicavelmente flauteada. Vêem, imediatamente, que a maior parte das suas congéneres, isto é, com pés homólogos, vem agarrada entre si e que o cesto fica, pode-se dizer, vazio.
Voltem a pôr todas no cesto, bem misturadas com as que lá tinham restado. Agarrem agora noutra de uma que tem um BM dos grandes e não paga um cêntimo ao fisco. A cesta leva um desbaste e, praticamente, ficam lá só, muito espremidos entre si, mas isolados, os cachos e os aquénios.
Continuem com outros exercícios, voltando, no fim da cada um, sempre a meter tudo no cesto sem nunca esquecerem de previamente misturar muito bem. Peguem, por exemplo, numa cereja pedófila, numa cabecilha da droga, noutra que gostava de ter nascido no Brasil, etc, etc.
Vão ver que o cesto, em todos os casos, quase se esvazia e que uma meia dúzia delas, teimosamente, apesar de terem pé, nunca de lá sai. Se repararem mais atentamente, notarão que essa meia dúzia é sempre a mesma, que anda obrigada a pagar os seus impostos e a fazer tudo para sempre ser mirrada, azeda, bichosa e, fundamentalmente sem pé, para nunca ser apanhada nem ainda mais comida."

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