29 março 2008

Na idade dos porquês

Professor diz-me
porquê?
Por que voa o papagaio
que solto no ar
que vejo voar
tão alto no vento
que o meu pensamento
não pode alcançar?

Professor diz-me
porquê?
Por que roda o meu pião?
Ele não tem nenhuma roda
E roda
gira
rodopia
e cai morto no chão...

Tenho nove anos
professor
e há tanto mistério à minha roda
que eu queria desvendar!
Por que é que o céu é azul?
Por que é que marulha o mar?
Porquê?
Tanto porquê que eu queria saber!
E tu que não me queres responder!

Tu falas, falas
professor
daquilo que te interessa
e que a mim não interessa.
Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar.
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir
Fazes-me decorar.

É a luta
professor
a luta em vez de amor.

Eu sou uma criança.
Tu és mais alto
mais forte
mais poderoso.
E a minha lança
quebra-se de encontro à tua muralha.

Mas
enquanto a tua voz zangada ralha
tu sabes
professor
eu fecho-me por dentro
faço uma cara resignada
e finjo
finjo que não penso em nada.

Mas penso.
Penso em como era engraçada
aquela rã
que esta manhã ouvi coaxar.
Que graça que tinha
aquela andorinha
que ontem à tarde vi passar!...

E quando tu depois vens definir
o que são conjunções
e preposições...
quando me fazes repetir
que os corações
têm duas aurículas e dois ventrículos
e tantas
tanta mais definições...
o meu coração
o meu coração que não sei como é feito
nem quero saber
cresce
cresce dentro do peito
a querer saltar cá para fora
professor
a ver se tu assim compreenderias
e me farias
mais belos os dias.

Alice Gomes (1946)

2 comentários:

Anónimo disse...

Belíssimo texto este.
Como seria se fosse escrito hoje?

Beijinho

GP disse...

lgbolhares. Hoje o texto seria:

Professor
estou-me nas tintas
para a razão por que voa o papagaio,
por que roda o meu pião,
por que é que o céu é azul,
por que marulha o mar.
Eu sou uma criança.
Mas deram-me mais poder do que a ti
e a minha lança vai acabar contigo.

Quando estás zangada
ralhas
mas eu continuo a fazer
o barulho que me apetece.

Não achei piada nenhuma aquela rã
Não faço ideia do que seja coaxar
Estou-me nas tintas para a andorinha
que ontem à tarde vi passar.

E quando tu depois vens definir
o que são conjunções
e preposições...
quando me fazes repetir
que os corações
têm duas aurículas e dois ventrículos
e tantas
tanta mais definições...
eu continuo a falar ao telemóvel
a passar papeis aos meus colegas
e a chamar-te nomes.

Dá-me positiva
que é tudo o que preciso
e depois desaparece
para passar não quero trabalho
estudar
é para quem não tem juízo.

E cuidado!
Eu tenho pais…

Beijinho