26 novembro 2007

Deus nos livre

Entre 1996 e 1999, leccionei Física e Química dos 10º e 11º anos e Química do 12º ano a uma turma daquelas que os professores, com sorte, apanham uma vez na vida. Rapazes e raparigas trabalhadores, vivos, bons colegas, amigos, com projectos de vida, educados e com vontade de aprender. Estas três últimas características foram banidas das escolas, com uma ou outra honrosas excepções. Entre os alunos desta turma havia um que, desde o 10º ano, me deu nas vistas pela sua postura. Logo no início me disse que, desde pequeno, queria ser médico. Em 1999, esse jovem não entrou em Medicina por décimas. Entrou em Enfermagem. Em 2000, já com o primeiro ano de enfermagem feito, voltou à Escola Secundária para fazer de novo os exames. É que a média dos exames nacionais é como um iogurte. Tem um prazo de validade muito curto. No início de Março veio a minha casa buscar material para preparar os exames. E voltou em 2001. E em 2002. E em 2003. E em 2004. Chegou e ter 20 a Química mas a Biologia não ajudou. Concluiu o curso de Enfermagem. Entrou em Veterinária e, quando estava no segundo ano, conseguiu finalmente realizar o seu sonho. Entrou em Medicina. Isto é perseverança. Isto é lutar por um sonho. A este médico entregava a minha vida de olhos fechados.
Um dia esse aluno, com quem ainda hoje mantenho contacto, disse-me que achava que a entrada em Medicina não deveria estar apenas dependente de médias. Aliás, dizia ele, os melhores alunos são, numa maioria significativa, os marrões que manifestam maiores deficiências nas relações humanas. Deveria haver provas que testassem as qualidades humanas dos candidatos.

Infelizmente não é. Os médicos são, na sua maioria, desumanos tendo em conta que lidam com seres humanos fragilizados. Todos temos histórias tristes para contar.
Mas testar qualidades humanas iria permitir a entrada em Medicina de alunos com notas mais baixas e, para a classe médica, isso era desprestigiante. Já houve, em 2004, uma tentativa de realizar uma prova, aliás excelentemente bem feita, para ser utilizada na selecção dos alunos para o curso. Na testagem dessa prova, as notas foram tão baixas que nunca foi avante essa ideia. Infelizmente.
Os médicos estão carregados de direitos mas, muitas vezes, esquecem-se de que também têm deveres. Principalmente o de tratar o doente como um ser humano com sentimentos.
Lembro-me de ser miúda e ouvir o meu Pai, que era radiologista, contar a história de um homem que dizia “Eu vou ao médico porque os médicos têm que viver. A seguir vou comprar os medicamentos porque o farmacêutico também precisa de viver. Depois deito os medicamentos fora porque eu também quero viver”
Deus nos livre de precisar dos médicos e de ir parar a um hospital sem uma cunha.

3 comentários:

MAGALHÃES PINTO disse...

A solidariedade de sentimentos parece ser a única coisa que podemos dar aos outros em tempos de aflição.

Nos tempos contrubados do pós-"25 de Abril", houve um cronista que muito se esforçou por remar contra a maré. Assinava como Manuel de Portugal. Um dia fui assistir a uma conferência dada por ele. Na qual ele reiterou aquilo que escrevia nas páginas do seu jornal, já desaparecido, titulado "Tempo". No período de debate, eu pedi a palavra e, na ingenuidade política da minha "juventude", perguntei-lhe:

- Mas porque é que nós também não vamos para a rua, como os comunistas?

Ao que ele respondeu:

- Essa é a nossa diferença. Nós não somos gente de andar nas ruas...

Pois eu, perdida já a inocência da minha "juventude" de então, continuo a fazer a mesma pergunta, não lhe tendo encontrado resposta...

Que tudo corra bem com a Teresinha.

GP disse...

Obrigada, Magalhães Pinto.
Pela solidariedade de sentimentos nos momentos de aflição, o meu beijinho amigo

Ka disse...

Graça,

Sem dúvida nenhuma que concordo contigo embora te diga que já tenho tido algumas surpresas agradáveis...

Beijinho para ti, Teresa e Lourenço