Hoje estou particularmente irritada. Para além da tendinite nos pulsos, que teima em não me dar tréguas, acordei com a voz de Valter Lemos. Haverá pior acordar que este? Depois li um jornal. Mais Valter Lemos acompanhado de Maria de Lurdes Rodrigues. Nas notícias da uma, mais Valter Lemos. Está a ser superior às minhas forças. Valter Lemos já é um desastre calado. A falar é de deixar os nervos em franja. Vou dormir a sesta para não ouvir mais nada.
Falam eles do novo estatuto do aluno do ensino não superior. Outro desastre. Tanto batalharam contra a falta de assiduidade dos professores! Agora incentivam a dos alunos. É assim que se educa? Não deveriam os jovens aprender a marcar a sua presença diária no seu posto de trabalho - a escola? Considero uma atitude particularmente deseducativa.
O facilitismo está na crista da onda. Isso lembrou-me uma crónica que escrevi, publicada em Outubro de 2004, e cujo título era "O Nijinsky escapou à licenciatura". Deixo aqui uns excertos dessa crónica para desabafo meu e para leitura de quem estiver interessado.
"Perdi completamente o rasto de um colega de curso que tive nos preparatórios de Engenharia na Universidade de Coimbra. Era de ascendência russa e fomos dois bons amigos. Uma excelente pessoa e um óptimo colega. Na casa dos pais do Miguel tal como na dos meus, sempre houve gatos. Um dia ele ofereceu-me um gato siamês, puro, da última ninhada de uma das gatas lá de casa. O bichano já vinha baptizado – Nijinsky. Lembro-me da empregada dos meus pais ter comentado a propósito do nome do bicho: “Ó menina! Nem eu lá vou quanto mais o gato!”.
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Voltemos ao tempo em que o Nijinsky ficava horas no colo do meu pai. Foi quando o curso de Engenharia passou de seis para cinco anos e quando o ensino começou a descambar e o superior começou a proliferar pelo país. Já era de prever que acabaríamos por ter uma 'faculdade' rua sim, rua não, em cidades, vilas e aldeias, com qualidade cada vez mais duvidosa. “Se não me acautelo, um dia destes dão uma licenciatura ao Nijinsky” – costumava dizer o meu pai. Viu longe. O Nijinsky só não é hoje licenciado porque já morreu. Temos Faculdades e Institutos em tudo quanto é lugarejo, com tudo quanto é professor e, tantas vezes sem quaisquer critérios de qualidade. Só não é licenciado quem não quer. Saber algo depois de licenciado já é outra conversa que, pelos vistos, não preocupa os governantes. Quando uma pessoa tira uma licenciatura em Línguas e Literaturas e diz “Há-des trazer-me o livro”, “Comprastes o que te pedi?” ou “Fará-se o que se puder”, ainda vamos a tempo de fazer alguma coisa?
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Interessa quantidade. A qualidade é um requisito que já não conta neste país. É preciso licenciados. Muitos. Quanto mais não seja para o desemprego. “O modelo que propomos para Portugal tem em conta as necessidades do país e a situação nos outros países europeus”, disse Maria da Graça Carvalho. E o modelo é claro. Licenciaturas em três anos. Mestrados com mais dois. Ou seja, no mesmo tempo, ou menos, que demorava tirar um curso superior, hoje já se tem o mestrado. Com jeitinho, os meus netos vão sair doutorados com um semestre numa qualquer faculdade. Só me tranquiliza saber que a formação e a cultura não lhes vão faltar.
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Quando eu me formei, um professor de qualquer grau de ensino, um médico, um advogado, um juiz, um economista, um engenheiro, um político,… eram pessoas com categoria merecedoras de todo o respeito. Uma elite com nível, com valores e com valor. Gente responsável. Profissionais competentes cujo exemplo era de seguir. A massificação do ensino, o abandalhamento da política, a demissão dos pais enquanto educadores, a desvalorização do mérito conduziram-nos ao caos que vivemos hoje. Salvo raras e honrosas excepções, ninguém respeita ninguém porque ninguém se sabe dar ao respeito.
Aqui há uns tempos, quando ainda tinha uma esperança de que o espírito orientador dos sindicatos fosse o bem do ensino, fui a um dos sindicatos de professores dos milhares que existem hoje. (Desconfio que há professores inscritos em vários sindicatos simultaneamente. Caso contrário, cada sindicato teria apenas meia dúzia de professores associados). Uma dirigente sindical contou-me que apareceu lá um professor para se tornar sócio. Tinha um curso médio tirado num qualquer Instituto duma cidade do Norte do país. A colega explicou-lhe que, embora lamentando, não podia associá-lo nesse sindicato porque só aceitavam licenciados por faculdades. “A mim têm de me aceitar. Tenho um mestrado em Artes em Verga” – disse o professor. Palavras para quê? É enorme o número de portugueses com mestrado em qualquer coisa. Não quer dizer que não haja mestrados sérios. Claro que há. Mas a banalização desse título, com qualidade duvidosa, retirou-lhe valor. Desacreditou-o. É melhor ter uma licenciatura “do antigamente” do que um mestrado de hoje. Como será daqui a uma dezena de anos?"
7 comentários:
gostei muito de a ler. vou repetir a dose :)
Abraço
Fico contente, moriae.
Um abraço
Ao ler me deparei com a realidade aqui no Brasil, que não foge da sua,muito interessante, só tenho a concordar com vc, uma lástima.
abraços
em tempo:
(adoro gatos, adorei Nijinsky
nome muito sugestivo, e pena que morreu, se não estaria tb graduaddo, (licenciado, como citou) não pude conter o riso aqui)
Cá estou :)
Um beijinho para si,
Margarida
olá, edna!
Pena que a lástima existA dos dois lados do Atlântico... São as futuras gerações que estão em causa.
Beijinho
Obrigada, Margarida pela visita.
Beijinho
Graça
É isso mesmo, lb. Mas essa geração das passagens administrativas já devia ter percebido que este não é o caminho. O facilitismo avança a passos largos porque se trabalha para os números e os números falam de conclusão de ciclos e não de alfabetização. A derrocada final não é para as minhas filhas mas para os meus netos. Felizmente têm família que lhes pode dar o que o ministério da educação não lhes dá. E o que mais me dói, e não perdoo, é que me tenham roubado o gosto que eu tinha na minha profissão. Ninguém tem esse direito.
Beijinho
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